TEXTO APRESENTADO EM AUDIÊNCIA AO GRUPO DE TRABALHO MORTE MEDICAMENTE ASSISTIDA NÃO PUNÍVEL (PJL n.ºs 5/XV/1.ª (BE), 74/XV/1.ª (PS), 83/XV/1.ª (PAN), 111/XV/1.ª (IL), A 15 DE SETEMBRO DE 2022

Agradecemos receberem-nos nesta audiência, no âmbito do estudo sobre aquilo que é de facto relevante para poder legislar com rigor e humanitude uma matéria de Vida ou de Morte.

A Associação dos Psicólogos Católicos tem como um dos seus objetivos permanecer aberta ao diálogo e à entreajuda esclarecida, entre as organizações e os movimentos nacionais e internacionais nas áreas de intervenção da Psicologia, para a dignificação do homem e para a promoção e defesa da vida.

Com este horizonte, trazemos algumas questões para contribuir para esta reflexão, que passo a ler:

1. De acordo com os projetos de Lei apresentados, e os seus enquadramentos, os critérios que permitem pedir a morte antecipada são a doença grave e incurável e a lesão definitiva de gravidade extrema, que causam sofrimento de grande intensidade e eventualmente, a perda de dignidade;

2. É sobre estes dois últimos - o sofrimento de grande intensidade e a dignidade humana - que esta intervenção se coloca.

3. Presume-se, porque não está especificado, que ambas – doença e lesão – sejam físicas, isto é, com origem orgânica observável, motivo pelo qual são avaliadas e atestadas por um médico, em parecer fundamentado;

SOFRIMENTO DE GRANDE INTENSIDADE

4. Já o sofrimento de grande intensidade, considerado intolerável pelo próprio, e entendido nas suas dimensões física, psicológica e espiritual, decorre de uma perceção e sentimento absolutamente individual, influenciada por inúmeros fatores, destacando a saúde mental, o estado emocional, a qualidade das relações interpessoais e a satisfação com as condições de Vida

5. Ainda que o sofrimento manifeste reações observáveis, pelo seu caracter, em grande parte, subjetivo, não é passível de ser aferido ou mensurável de forma objetiva.

6. Por isso, à semelhança do parecer fundamentado relativo à doença e à lesão orgânicas, é fundamental, e porventura ainda mais determinante, o parecer fundamentado sobre a avaliação e a validação do sofrimento de grande intensidade:
a. Têm os médicos, orientador e especialista, a competência clínica, baseada em investigação científica e consolidada na formação específica continua, para emitir um parecer fundamentado sobre saúde mental, estado emocional, qualidade das relações interpessoais e satisfação com a qualidade das condições de Vida a pessoa doente?

7. O único momento em que doença mental, repito, a doença e não a saúde mental, é tida em consideração, no artigo 7º, é na necessidade de um parecer psiquiátrico apenas e só no caso em que os médicos orientador e/ou especialista duvidem que o doente é capaz de tomar uma decisão (assente numa vontade séria, livre e esclarecida) ou que suspeitem de perturbação psíquica ou condição medica que afete a capacidade de tomada de decisão.
a. Têm os médicos, orientador e especialista, a competência clínica, baseada em investigação científica e consolidada na formação específica especializada, para avaliar a capacidade de tomada de decisão, capacidade central e determinante no pedido consciente para morrer?

8. O artigo 5º destes projetos de Lei prevê que o doente, que cumpre os requisitos já referidos, seja informado e esclarecido pelo médico orientador sobre a condição clínica – leia-se física - que o afeta, tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis, designadamente na área dos cuidados paliativos e o respetivo prognóstico.

a. Presume-se que este momento de informação e esclarecimento é garantia de que o doente conhece as supostas alternativas para diminuir - e se possível eliminar - o seu sofrimento, em alternativa a morrer, e acabar com a sua vida?

b. E que por isso o profissional de saúde pode confirmar que a pessoa está a tomar um decisão livre, séria e informada?

c. Atualmente, em Portugal, a resposta, a qualidade da resposta e a capacidade de resposta para os doentes com doença grave e incurável ou com lesão definitiva de gravidade extrema, e seus cuidadores e famílias, é escassa, débil e em muitos lugares, absolutamente inexistente. Estamos a falar de paliação do sofrimento físico, de acompanhamento psicológico frequente e regular e de cuidados e assistência humana capazes de fazer renascer em cada pessoa, doente, o sentido profundo da sua existência e do valor inestimável da sua vida.

d. Considerar que a pessoa doente toma uma decisão livre e consciente porque foi informado e esclarecido sobre alternativas inexistentes, ou seja, esclarecido sobre a falta de alternativas, não será insuficiente?

9. Relativamente ao critério de sofrimento de grande intensidade, entendemos que não estão contemplados neste projetos de Lei questões basilares, nomeadamente:

a. A necessidade de um parecer fundamentado sobre a saúde mental da pessoa que pede a morte antecipada, em todos os casos.

b. A necessidade de uma avaliação psicológica com foco na capacidade de tomada de decisão, em todos os casos.

c. A necessidade de uma avaliação das circunstâncias atuais de vida que condicionam e influenciam a experiência do sofrimento de grande intensidade, e cuja alteração pode introduzir mudanças na perceção do grau de sofrimento.

d. A necessidade de garantir a disponibilização de opções que possam alterar o estado de sofrimento da pessoa doente, que não se restringe a tratamentos ou a paliação física, e que podem significar a implementação, a alteração ou ajuste de cuidados continuados, tendo em conta a avaliação prévia das circunstâncias atuais.

e. A consequente necessidade de incluir a presença de psicólogos, com as competências necessárias, ao longo de todo o processo, desde o pedido até à eventual concretização da morte antecipada.

MORTE DIGNA

10. O enquadramento destes projetos de Lei refere que estes têm por base o respeito pela liberdade, pela dignidade e pela autodeterminação dos cidadãos.

11. O ser humano nasce para a Vida e a Vida Humana, em toda a sua dignidade, compreende o sofrimento e morte. A dignidade não é, por isso, um atributo da morte, mas sim um atributo não alienável da Vida. E o desejo da morte é contra a natureza humana e surge quando as circunstâncias da Vida, independentemente da sua natureza, são percebidas como intoleráveis. A pessoa doente não quer morrer, quer deixar de sofrer.

12. Nos projetos de Lei apresentados, para a concretização da decisão da pessoa doente, ou seja, para morrer, é necessário que sete pessoas, ou oito no caso de ser considerado relevante o parecer do médico psiquiatra, deem um parecer, fundamentado e favorável, respeitador da sua liberdade, dignidade e autodeterminação.

13. Ou seja, o Estado concede a uma pessoa doente a liberdade de pedir a morte, desde que algumas pessoas, aquelas que o legislador entende serem necessárias, deem um parecer favorável, ou seja, concordem, que aquela pessoa tem capacidade para decidir que morrer é a melhor alternativa ao seu estado de sofrimento atual. Sendo que nenhuma delas é especialista na avaliação e no tratamento do sofrimento psicológico e espiritual, duas das vertentes fundamentais do sofrimento de grande intensidade

a. É este o nível de respeito pela liberdade da pessoa doente que queremos em Portugal? Fundamentado no parecer de profissionais que têm competência em parte da matéria, deixando ao acaso outras matérias absolutamente fundamentais como é o sofrimento intolerável?

14. Somando a isto o facto de serem oferecidas pelo médico informações sobre alternativas inexistentes, ou seja, na falta de alternativas que mudem e melhorem a qualidade da Vida da pessoa doente, é necessário então redefinir o conceito de liberdade.

a. Afirmar que se pretende respeitar a autodeterminação da pessoa doente, na ausência de perspetivas de vida, é ser conivente com a morte.

b. E se parece a sete ou oito pessoas diferentes, presumindo-se que com qualificações para atestar o efeito, que uma pessoa doente reúne condições para não quere mais viver mais, e que na falta de alternativas é verdade que a melhor opção é a morte, estamos a afirmar que a sua vida perdeu o valor, dignidade e importância. E por isso, estamos todos a falhar absolutamente como sociedade e o Estado a incumprir a sua função primordial de garantir a liberdade e de respeito pela dignidade e autodeterminação.

15. A dignidade é um valor da Vida. Enquanto não estiver assegurada e disponível - pelo menos! - uma resposta eficaz de paliação e de intervenção psicológica regular, estes projetos de Lei são insustentáveis. Porque pretendem, contraditoriamente, o mesmo e o inverso: respeitar a liberdade sem garantir que a pessoa doente está em condições de decidir livremente.

16. Por fim, a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida, ou seja, as pessoas que vão garantir que estão reunidas as condições legais para conceder a um cidadão a morte antecipada assistida, é composta por dois juristas, um médico, um enfermeiro e um especialista em bioética.

a. Na sua constituição, como já foi sugerido pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, e pelo acima exposto, é fundamental a presença de um/a Psicólogo/a nesta Comissão.


b. Na sua caracterização, não compreendemos o motivo pelo qual os profissionais de saúde que compõem esta comissão não podem ser objetores de consciência. Em nome do princípio da imparcialidade, o legislador assume que somente os profissionais de saúde disponíveis para concretizar o pedido da pessoa doente para morrer estão aptos a verificar o cumprimento dos requisitos para pedir a morte antecipada? A proibição de objetores de consciência não significa eliminar do caminho o obstáculo da possível discórdia e facilitar o processo?


Termino reforçando a nossa disponibilidade para o diálogo e total colaboração nas áreas de intervenção da Psicologia, para a dignificação do ser humano e para a promoção e defesa da vida.

Muito obrigada.

Lisboa, 15 de Setembro de 2022

Maria Costa Duarte

 

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